O que é conhecimento? Ou visões da realidade

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Queremos conhecer para resolver problemas ou para entender aquilo que admiramos. Mas como ter certeza de que o que pensamos realmente condiz com a realidade? Dessa indagação surgem as inquietações da epistemologia que se pergunta sobre o conhecimento.

Nesse texto começo explicando o que é conhecimento, o que é teoria, produção de conhecimento, como criar conhecimento confiável e, por fim, o que é ciência, paradigmas e relativismo. Com isso tudo é possível entender como obter conclusões mais precisas sobre o mundo do que o senso comum.

O que é conhecimento?

Nós temos necessidade de conhecer o mundo. E não estou falando de viagens. Precisamos de algum modo entender como o mundo funciona, seja para sobreviver ou para admirar. Precisamos conhecer o caminho até o trabalho, como se faz um almoço ou como nos livramos de piolhos. Em alguns momentos, nos debruçamos sobre a história para admirar a vida de grandes líderes ou a transformação de um povo em país. Temos necessidade de conhecer.

Mas o que é conhecimento? Essa pergunta nos abre portas e janelas que nos levam ao mais alto do céu e aos oceanos mais profundos. Vou me ater ao que é importante saber para realizarmos pesquisas de boa qualidade.

De maneira técnica, conhecimento é uma crença verdadeira justificada. Dito de outro modo, conhecimento são ideias em nossa cabeça que nos fazem entender como o mundo funciona de maneira verdadeira, isto é, as ideias representam bem a realidade por meio de algum tipo fundamento ou embasamento.

O conhecimento é um esforço de criar um reflexo do mundo em palavras, como um espelho

Se eu digo que o céu azul e mostro uma foto do céu azul que corresponde ao que eu disse, então, tecnicamente, isso que eu disse pode ser considerado conhecimento na forma de enunciado.

No entanto, muitas questões emergem quando queremos ter certeza da correspondência entre aquilo que afirmamos sobre a realidade e aquilo que é a realidade. Para isso, buscamos fundamentação, algo que garanta que a afirmação é verdadeira.

A fundamentação de um enunciado pode ter duas origens: ou fatos, a qual atende pelo termo de dados empíricos; ou razão, mais conhecida como argumentação lógica ou explicação racional. A fundamentação empírica é essa do exemplo, a foto do céu que representa a representação da experiência da visão. Tudo que é empírico vem da experiência com a realidade por meio dos cinco sentidos (visão, audição, tato, paladar, olfato).

Já a fundamentação do enunciado conforme a razão pode ser demonstrada pela famosa reflexão de Descartes. Em suas investigações filosóficas, ele começou a duvidar de todo conhecimento que possuía porque suas fontes poderiam estar erradas. De tanto duvidar, só sobrou sua própria reflexão sobre a dúvida. Nesse ponto ele tinha certeza apenas de que estava duvidando ou seja, de que estava pensando e de que existia, pois, se não existisse não conseguiria pensar. Então, de maneira totalmente racional, sem recorrer aos fatos advindos dos cinco sentidos, chegou na sua famosa frase:

Penso, logo existo

René Descartes

O estudo do conhecimento, ou epistemologia, nos ajuda a superar as ilusões, os erros e entender melhor a realidade. Ela nos ajuda a superar o que é mera opinião e o que expressa com mais confiança o que é o mundo. Mesmo assim, a realidade pode mudar e conclusões que que eram válidas hoje podem não serem mais no futuro. É esse cuidado que nos vai permitir criar teorias válidas sobre esse mundo.

Do conhecimento à teoria

Nesse contexto, teoria é o entendimento explícito e estruturado que temos do mundo. Tecnicamente falando, teoria é um conjunto de enunciados logicamente conectados entre si que correspondem à realidade no sentido de descrevê-la, explicá-la ou prevê-la. Isso quer dizer que o entendimento que fazemos do mundo é um conjunto de ideias organizadas, fundamentadas e, de algum modo explícita, como em texto.

O processo de chegar na teoria é diverso e segue várias reflexões lógicas sobre os enunciados para chegar a uma conclusão. O processo de entender a realidade envolve gerar várias ideias sobre ela e chegar a conclusões de maneira organizada. Há uma frase que representa bem esse raciocínio:

A ciência é feita de fatos, assim como uma casa é feita de tijolos; mas um amontoado de fatos não é ciência, assim como um amontoado de tijolos não é uma casa

Henri Poincaré

O esforço de chegar a conclusões sobre a realidade e criar teorias envolve ter tijolos (dados empíricos ou lógicos) mas dar um sentido a eles (em uma casa) por meio de relações, organização, categorização.

Dentre essas relações, temos a causalidade, tão famosa na pesquisa quantitativa. Nesse caso, compreender a realidade não é meramente dizer o que existe, mas avaliar fatores que explicam como aquelas coisas foram causadas, que fatores estão envolvidos, de modo que se possa não explicar mas também prever.

Conhecemos as teorias por meio esquemas visuais que conectam ideias

Esse esforço também envolve dominar três coisas, chamadas de linguagem: sintaxe, semântica e pragmática.

A sintaxe é nada mais nada menos do que redação, gramática e tudo aquilo que talvez alguns alunos não viam utilidade no colégio. A construção do conhecimento é feita por palavras. A realidade é descrita em enunciados por meio de texto. Descrever a realidade vai exigir do pesquisador ser preciso para não correr o risco de falar algo que não é real. É preciso também saber interpretar o texto para entender, usar e até mesmo criticar outros enunciados de outras teorias.

A semântica diz respeito não ao texto em si, mas uma habilidade de pensar no que significam os enunciados e se eles realmente correspondem à realidade. Aqui o pesquisador terá que não só entender o texto mas compreender também a realidade e compará-las para verificar se correspondem. Aqui a ideia é não só falar bem que “o céu tem uma cor azulada durante o dia” mas também olhar pela janela para ver se é essa mesmo a cor do céu.

Já a pragmática envolve entender o contexto dos enunciados. Isso envolve reflexões sobre o que poderia influenciar ou ajudar a compreender o conhecimento tais como: época, cultura, posição social, região e assim por diante.

Criando conhecimento

Existem duas tradicionais maneiras de construir conhecimento. Uma delas é de baixo para cima, ou a indutiva; a outra é de cima para baixo, ou dedutiva. Vou falar de cada uma delas a partir de agora.

De baixo para cima

O modo indutivo de geração de conhecimento vai do particular para o geral; isto é, seu início está na experiência, nos dados empíricos, nos fatos, na observação, no descritivo que passa por constantes reflexões e conclusões até chegar no geral, no universal, no inobservável, no explicativo, no abstrato, na teoria.

Por um lado, a observação do empírico primeiro permite entender padrões do tipo: sempre que ocorre A também ocorre B, logo A está associado a B. Como, por exemplo, sempre que estamos no verão a temperatura está alta, logo o verão é um fator de explica a temperatura. Esse raciocínio é útil para pesquisa quantitativa na sua busca por leis, fatores e/ou causas.

Nas perspectiva qualitativa, a observação empírica nem sempre permite generalização, podendo apenas chegar a hipóteses ou reflexões teóricas importantes.

Vou dar o exemplo dos meus estudos sobre experiência. Observando as experiências, consigo identificar alguns padrões ou experiências que se repetem. Desse modo, posso construir uma teoria sobre que experiências existem, como elas funcionam, de que são formadas, se são parecidas com o que diz a teoria, mas não consigo afirmar que elas sempre existirão nas mesmas condições por não é possível generalizar.

Uma observação é que um processo nunca é totalmente indutivo. O pesquisador sempre vai partir de algum concepção teórica, mesmo que não consciente, para entender a realidade. Além do que, para chegar do particular ao geral, o processo vai chegar várias reflexões dedutivas de modo que se não ocorressem nunca seria possível teorizar.

O processo indutivo envolve a observação da realidade ao nosso redor para dar início às reflexões

De cima para baixo

Nessa perspectiva, o pesquisador simplesmente cria as teorias livremente tentando explicar a realidade e depois transforma suas reflexões em hipóteses a serem testadas ou verificadas por meio de fatos, dados empíricos. Assim os enunciados são tidos intuitivamente por meio da razão ao analisar um problema. Parte-se do geral, o universal, a teoria para depois verificar sua validade por meio de testes empíricos. É o que se chama de método hipotético-dedutivo.

Quando os universos colidem

A indução e a dedução, o empirismo e o racionalismo e todas essas dualidades que conversamos podem ser utilizadas em conjunto. Na prática, as teorias são produzidas de maneira criativa e as grandes descobertas contam com o acaso, a serendipidade. O mito do pesquisador um pouco maluco faz sentido se pensarmos que há sempre muita criatividade e imprevisibilidade no processo. Desse modo, diversas reflexões são realizadas para se chegar em um entendimento, reflexões tanto indutivas quanto dedutivas.

Como criar conhecimento confiável?

Ter certeza ou gerar conhecimento confiável é tarefa do que chamamos tecnicamente de justificação epistêmica. Afinal, todo esse complexo processo pode gerar apenas algum tipo de ilusão do pesquisador. Então, como ter certeza do conhecimento que foi criado corresponde com a realidade? Chegamos mais perto da certeza quando os enunciados estão justificados, fundamentados em algo. É sobre os tipos de justificação que falaremos agora.

Fundacionalismo

Sabe o cuidado de que no texto acadêmico de que todas as afirmações devem vir com alguma citação? Sabe por que isso acontece? A citação indica que o que você está afirmando com ela já foi julgado e aceito por alguma instância da comunidade acadêmica. Ou seja, você está afirmando algo próximo de estar comprovado cientificamente, sendo, por isso, mais seguro.

Agora imagine a seguinte situação. Você afirma algo citando André porque é o estudo de André é confiável. Mas esse André já usou um citação de Bruno pelo estudo de Bruno ser confiável. Por sua vez, Bruno fundamentou sua visão em Carla porque o estudo de Carla era confiável e assim por diante. Note que estamos sempre citando alguém para criar afirmações confiáveis de modo que estamos sempre nos baseando em alguma outra afirmação.

Um retrato disso seria mais ou menos assim: André se baseou em Bruno que se baseou em Carla que se baseou em Diogo. Notem que Diogo não se baseou em ninguém. É sobre essa afirmação que o fundacionalismo fala. Essa afirmação (ou crença, falando mais tecnicamente) poderá ser fundamentada nos dados empíricos (os fatos advindos da experiência) ou na intuição racional (como é o caso do “penso, logo existo”).

Então o fundacionalismo vai propor que uma reflexão acadêmica válida deve estar sempre fundamentada em outra válida, nem que seja algo evidente por si mesmo (como os dados empíricos ou a intuição racional).

Coerentismo

Agora imaginem um julgamento de um crime. Um advogado acusa alguém de ter cometido assassinato, no entanto só tem uma prova, que seria o relato de um vizinho. Diante disso, o juiz diz não haver indícios suficientes para prender o acusado.

Meses depois, o julgamento é retomado em outras condições. Apesar de não haver nenhum vídeo do acusado cometendo o crime, outros três vizinhos deram relatos, foi encontrado manchas de sangue no carro do acusado e uma faca que ele tinha em casa tinha a forma das marcas de corte na pessoa assassinada. O juiz então fica mais perto de um veredito, não acham?

Esse raciocínio serve para entendermos o coerentismo. Ele propõe que para considerarmos uma afirmação válida, ela precisa ter várias evidências diferentes que a apoiem sem que haja contradição entre elas. Além disso, as próprias afirmações não devem se contradizer.

Nessa perspectiva, podemos imaginar que quando formar defender as descobertas em um artigo, deveríamos utilizar várias fontes: trechos de entrevista, fotografias, outros estudos que chegaram em conclusões semelhantes, deduções lógicas e assim por diante. Se tudo isso aponta para uma mesma conclusão e não há contradições, o que se está propondo é mais seguro de ser válido.

No coerentismo, o pesquisador age como um detetive ligando evidências da realidade

Confiabilismo

Já o confiabilismo destaca o método. Aqui, um conhecimento válido é aquele que foi produzido por um sistema seguro. O sistema é todo procedimento que produz conhecimento, isto é, o método.

Aqui a ideia é ter um método confiável que afaste do processo raciocínios confusos, intenções obscuras do pesquisador, advinhações, pressentimentos, emoções, conclusões descuidadas, poucas evidências, vieses, fascínio pelo argumento da autoridade em vez da autoridade do argumento, retórica em vez de lógica e fatos, uso descuidado da linguagem e assim por diante. Por outro lado, são bem vindos cuidados com percepção, memória, introspecção, raciocínio claro e estruturado.

É por isso que temos uma seção de método nos artigos científicos. É preciso esclarecer para o leitor como as conclusões da pesquisa foram construídas. Assim, quem lê pode julgar se o procedimento é confiável ou não.

Existe até uma frase de Francis Bacon que deixa claro a importância do método e que adaptei para se tornar mais clara:

A tartaruga seguindo o caminho certo ultrapassa o tigre que não sabe para onde está indo

Por isso, é melhor fazer uma reflexão demorada para realizar uma boa pesquisa, com conclusões confiáveis, mais perto da verdade, do que fazer vários estudos rápidos e descartáveis.

Falibilismo

Aqueles que estudam a história da ciência podem notar que muitas reviravoltas já aconteceram. Um conhecimento que era tido como verdade absoluta ficara obsoleto porque alguém questionou, argumentou e chegou em uma resposta melhor.

Um dos grandes casos desse tipo foi o de Galileu. Em sua época, havia a crença de que a Terra era o centro do universo e de que todos os astros giravam ao redor dela. Essa crença era a base para o poder que dominava as estruturas de poder na época.

Com argumentação baseadas em fatos, Galileu afirmou que a terra girava em torno do sol. Por questionar, foi perseguido brutalmente. Hoje, adotamos a visão de Galileu, apoiada até mesmo em gravações de vídeo feitos do espaço (dados empíricos!).

Essa experiência nos faz entender que as verdades podem ser questionadas e substituídas por outras melhores. Se não for desse modo, o conhecimento nunca evolui, fica estático e impede o progresso humano.

O falibilismo se refere a isso. Nessa perspectiva, só são válidas as afirmações que podem ser criticadas e refutadas. Refutar é provar que uma afirmação está errada. Notem que existe uma diferença entre ser possível a refutação e, de fato, existir a refutação.

Vejam o caso da astrologia. Uma das principais críticas a ela é que existem muitas interpretações para um mesmo fenômeno e isso impede a refutação. Imagine que existe a afirmação que todos que são do signo de leão são líderes. Alguém refuta isso mostrando que existe um leonino que não é líder, logo aparece uma outra interpretação, dizendo que é essa pessoa tem ascendência em peixes, e por isso não é líder. Notem que sempre vai poder haver uma outra interpretação que impede a conclusão da crítica. Nesse caso, dizemos que a lógica astrológica não é passível de refutação, logo não é confiável para a ciência.

No entanto, vale lembrar que o saber místico se apoia em outro raciocínio e pode ser válido em outras dimensões, como a espiritual. Mas isso é assunto para outro texto algum dia.

O que é ciência?

Não existe um consenso sobre o que é ciência, o que não nos impede de entendê-la. Considerando tudo o que eu já disse nesse texto, ciência é uma forma de gerar conhecimento. Forma essa bem específica.

A ciência investiga as leis que regem o mundo. Os cientistas fazem isso por meio dos testes de hipóteses, pela lógica de cima para baixo e pelo falibilismo que já comentei aqui. Ou seja, é preciso ter afirmações teóricas que sejam passíveis de refutação e que sejam provadas por meio de fatos, testes ou pela lógica.

Uma observação pode ser feita para as ciências formais, como a matemática, que diferem um pouco das mais intensamente empíricas, como a psicologia. As formais se fundamentam muito mais na lógica e demonstrações teóricas.

Por causa do falseamento (em que as afirmações devem ser refutáveis), nenhuma verdade é fixa e podem ser contestadas por fatos a qualquer momento. Então, é possível dizer que a ciência não produz verdades, mas a falsidade ou não de uma afirmação, lei ou teoria.

As várias ciências

Existem muitas questões a serem discutidas sobre a ciência. Trouxe uma explicação não como ponto final mas como ponto de partida para que aqueles que se interessem busquem mais informação.

Darwinismo, paradigmas e relativismo

A aceitação ou não de uma teoria depende da refutação da mesma. Temos assim uma espécie de guerra na ciência com autores refutando uns aos outros, derrubando ou exaltando teorias. Dessa guerra concluímos que existe um darwinismo científico em que só as teorias mais “fortes” sobrevivem às críticas.

Os teóricos debatem com críticas uns aos outros em um tabuleiro teórico

Na prática, as refutações são menos comuns do que deveriam ser. Acontece que grupos de pesquisadores se unem por terem o mesmo ponto de vista sobre como produzir conhecimento. Esses pontos de vista em comum junto com práticas e discursos fazem parte do que chamamos de paradigmas.

Os paradigmas orientam grupos de pesquisadores a defenderem o que é válido e o que não é, o que é aceito ou não. Isso cria diferentes correntes de pensamento sobre os mesmos procedimentos científicos. Inclusive, é por isso que não temos um consenso do que é ciência: cada paradigma tem sua visão do que ela seja.

O problema é quando um pesquisador se deixa dominar por um paradigma, que acaba se tornando um viés impedindo de criar conhecimento condizente com a realidade. Em outra frente, pode surgir uma visão que traduzia melhor a realidade e rompa vários paradigmas, criando um novo e mais preciso em uma espécie de revolução.

Essas diferentes visões acabam gerando o que chamamos de relativismo. Cada paradigma ou pesquisador acaba por ter sua própria concepção do que é conhecimento, o que é aceito e como ele deve ser produzido. Isso gera diferentes versões de uma mesma realidade.

Na prática, não há como ter uma visão unificada e a ciência sempre será um grande tabuleiro de disputas de diferentes visões. Talvez o nome “universidade” poeticamente faça sentido pois se trata de um espaço gigante e rico de diferentes concepções tal como o universo é rico em elementos.

Aparentemente esse texto é longo, mas não se comparado a um livro. Procurei trazer o que há de essencial para entendermos o básico sobre a lógica acadêmica e/ou científica. É essa discussão toda que nos torna capazes de afirmar mais precisamente o que o mundo é o que o senso comum. Essas informações são a base para entendermos os famosos procedimentos metodológicos, assunto do nosso próximo texto.

Professor Rodrigo

Doutor em Administração, professor e pesquisador há mais de 10 anos.

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