Como escrever um referencial teórico? Ou a ajuda dos gigantes

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O referencial teórico funciona como uma porta de conhecimento que leva o leitor à compreensão da pesquisa. É nele que vão aparecer as teorias, conceitos, definições que vão explicar o necessário para que as descobertas feitas naquela investigação sejam compreendidas.

Na prática, existem várias maneiras de escrever um referencial teórico. Aqui trago uma abordagem com certa flexibilidade para o aluno construir seu referencial a partir da sua visão singular. Primeiro eu explico a função dessa seção do trabalho acadêmico, seguido de estratégias e tipos de teoria até o que é necessário para ter uma redação de qualidade.

Para que serve o referencial teórico?

Antes de partir para as leituras e a redação é preciso entender a função do referencial teórico. De um ponto de vista prático, o referencial serve para trazer ao leitor o conhecimento necessário para entender a investigação da pesquisa.

No caso de uma pesquisa sobre experiência do consumidor em bares, por exemplo, é preciso dizer ao leitor o que o pesquisador quis dizer com esses termos: as noções do que são consumidores, experiência e bares. Trazer esse esclarecimento afasta o estudo do senso comum e aproxima das leituras teóricas desenvolvidas por outros pesquisadores, uma vez que passaram por procedimentos acadêmicos.

Essa busca por conhecimento consolidado que já existe serve também para o pesquisador não reinventar a roda, isto é, utilizar conhecimento que já existe em vez de criá-lo do zero. Essa lógica está bem representada na importante frase a qual o google acadêmico faz referência na sua página inicial:

Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes

Issac Newton

Podemos entender tudo isso da seguinte maneira. Se outras pessoas já estudaram sobre o assunto que estou pesquisando, por que não consultá-los? Por que não aprender com os estudos e experiências dos outros? Quando utilizamos conhecimento que já existe, estamos ganhando tempo já que não precisamos passar pelo mesmo que outros já passaram. Ao mesmo tempo, o conhecimento anterior nos permite ir intelectualmente além do que poderíamos ir sozinhos. Tudo isso nos leva a saber mais do que outros já sabiam.

Esse processo acontece como uma corrida de revezamento em que um corredor percorre uma distância e passa o bastão a outro para completar o espaço restante. Os pesquisadores anteriores percorrem uma distância no conhecimento e passam para outro correr mais rápido uma nova distância até a linha de chegada. Assim o conhecimento é passado de um pesquisador para outro na forma de texto e isso permite que o saber acadêmico dure mesmo após a vida de quem o descobriu.

Seja um estrategista

Existe uma visão romântica de como escrever textos. Nela, o escritor senta na frente do computador e simplesmente joga tudo que vem a sua mente. Mesmo que a pesquisa seja de fato algo fantástico, essa é uma das piores maneiras de compor um trabalho acadêmico.

A melhor maneira é planejar todo o texto. Isso vale não só para o referencial teórico mas especialmente para ele porque é uma das partes que demandam maior volume de leitura. Além disso, é fácil se cansar e se perder nesse oceano de informação.

Para fazer um bom plano sugiro tenha uma estratégia de construção assim como compreensão dos tipos de teoria que costumam compor um referencial teórico. As estratégias de construção do referencial teórico são 3: a partir da pergunta e problema de pesquisa; a partir dos resultados; ou a partir de uma extensa revisão de literatura.

As 3 estratégias

Como já dito, o referencial teórico é uma coleção de conhecimentos necessários para entender a investigação. Esse conhecimento serve fazer o leitor entender algo. Por outro lado, a pesquisa não é feita de uma vez só, mas em partes e é muito comum que os alunos comecem pela introdução ou pelo próprio referencial. Para entender essas lógicas, tenho um conteúdo lúdico e outro mais técnico que podem ajudar.

A partir da pergunta e problema de pesquisa

Quando a pesquisa começa pela redação da introdução, os resultados ainda não estão prontos e o que se tem de concreto até o momento é o que se quer investigar (concretizado pela pergunta de pesquisa) e o que será resolvido com a pesquisa (relacionado ao problema de pesquisa). Assuntos que já abordei em outro texto.

Essa semente de pesquisa deverá funcionar como um norte na busca por literatura e a redação. Como se o pesquisador quisesse responder à pergunta e esclarecer o problema apenas com a literatura. Por exemplo, se uma pergunta aponta para tentar descrever uma experiência no São João, se vai tentar buscar outros trabalhos sobre experiência, sobre o São João, sobre festas populares e tentar esclarecer sobre esses assuntos.

A partir dos resultados

A estratégia a partir dos resultados é mais simples. Nesse caso, o pesquisador começou a pesquisa pela produção e redação dos resultados. Uma vez tendo isso concluído, basta mapear tudo que é necessário para entender os resultados, fazer uma lista e incluir no que será exposto no referencial teórico, como conceitos, teorias, definições e assim por diante.

Extensa revisão de literatura

Já extensa revisão de literatura não tem um norte claro como a pergunta e o problema ou os resultados. Nesse caso, o pesquisador faz uma leitura ampla de várias fontes sem estar guiado por algo específico. O objetivo é dar conta de tudo que foi produzido sobre determinado assunto ou recorte desse assunto. Nesse caso, o referencial teórico será uma síntese dessa leitura, tentando dar conta do todo de maneira resumida. Por exemplo, uma síntese de tudo que se sabe sobre experiência em grandes eventos em revistas nas revistas de maior prestígio da área.

Os 3 tipos de teoria

O processo de construção do referencial teórico que proponho demanda o entendimento dos tipos de teoria em conjunto com as estratégias. Talvez você esteja se perguntado que conhecimento é esse que explica tanta coisa sobre a pesquisa e que está no referencial teórico. Estou falando de teoria. Assunto sobre o qual já falei em outro texto.

Teoria é uma explicação abstrata sobre o que são as coisas do mundo real e como elas funcionam. A teoria é tão abstrata que precisamos de exemplos para entender. Quando falo de experiência do consumidor pode ser que não entendamos muito bem de primeira. Eu posso ser mais específico e me aproximar cada vez mais das coisas concretas.

A teoria representa a realidade do mesmo modo que um mapa representa o mundo e permite conhecê-lo sem sair do lugar

Posso dizer que é tudo que o consumidor vive relacionado ao consumo. Já melhora um pouco. Posso ainda dizer que um exemplo é o da compra de um carro. Que essa experiência é tudo que acontece com alguém desde vê uma Ferrari na rua e tem vontade de comprar, passando pelo momento da compra desse carro até a hora em que esse carro é vendido para um outra pessoa que coleciona esse tipo de produto. Agora ficou ainda mais claro porque não estamos mais falando apenas abstratamente, mas sim concretamente.

E por que usar a teoria e não os exemplos? Porque a teoria tem o poder da generalização. Quando falamos sobre experiência do consumidor estamos falando de todas as experiências de consumidor possíveis (até que se especifique qual). Nesse sentido, a teoria fala sempre de tudo, do geral, abstrato, dos tipos, das categorias; já os exemplos falam do específico, do particular, do empírico. A teoria vai mais longe, é mais profunda, mais ampla.

Teoria de área

Dito isso, podemos falar dos 3 tipos de teoria que geralmente estão presentes no referencial teórico. A primeira é a teoria de área, uma teoria sobre a teoria (ou metateoria). Essa teoria permite ao leitor entender em qual parte do conhecimento acadêmico se localiza uma pesquisa. Elas falam das grandes áreas como a Administração, que se ramifica em subáreas como Marketing, Recursos Humanos, Operações e Finanças; já Marketing pode ter outras subáreas como Comportamento do consumidor e assim por diante. A teoria de área fala sobre o conjunto de estudos que formam essa áreas e subáreas, assim como suas características comuns, quantidades de estudos, história dentre outras. É comum encontrar esse tipo de teoria em bibliometrias, revisões de literatura e revisões sistemáticas de literatura.

Teoria de análise

A segunda teoria é a que eu chamo teoria de análise. Essas são teorias específicas, conectadas ou não, que permitem o pesquisador fazer a análise dos dados. Por exemplo, nos meus estudos sobre experiência do consumidor no São João está óbvio que eu analiso experiências, porém não está claro o que considero serem essas experiências.

A teoria sobre experiência a define como todos os pensamentos, emoções e ações do consumidor, o que torna mais claro o que tenho e mente. No caso, vou buscar nas entrevistas tudo que me lembrar de pensamentos, emoções e ações com é o caso das danças (ação), saudade (emoção) e críticas (pensamento). É com base nessa concepção de experiência que posso fazer descrições mais precisas desses eventos. Notem que quanto mais a teoria é definida, melhor consigo entender a realidade concreta.

Teoria de objeto

Por fim, temos a teoria de objeto. Objeto é aquilo que observamos na realidade para construir uma teoria. São os elementos do mundo real sobre os quais coletaremos e analisaremos dados. No caso dos meus estudos sobre experiência do consumidor no São João, meu objeto é o consumidor do São João. Então já sei sobre o que vou coletar dados, vou entrevistar e observar as pessoas que estão consumindo a festa junina.

Objeto pode ainda ser classificado, isto é, estar dentro de uma categoria teórica. O São João, por exemplo, pode ser visto como uma festa popular, um megaevento, uma manifestação cultural, um produto do turismo ou uma experiência extraordinária. Isso ajuda a dar os traços, cores e formas do objeto na visão do pesquisador.

Funções, conexões e intepretações teóricas

Essas teorias precisam estar no referencial teórico para que compreendamos bem a investigação a ser feita. A teoria de área ajuda e entender com qual parte do conhecimento e comunidade acadêmica estamos nos comunicando; a teoria de análise é útil para deixamos claro como vamos analisar o objeto de estudo; já a teoria de objeto nos faz entender o que estamos observando, como é essa coisa do mundo real que vamos analisar.

Essas teorias também se relacionam e partem do mais geral para o mais particular. A teoria de área é um categoria em que está a teoria de análise, que serve para analisar um objeto. No caso do exemplo dado sobre a experiência do São João, posso dizer que dentro da área de Marketing se localiza a teoria sobre experiência do consumidor que serve para analisar o objeto que é o consumidor do São João. Notem também que tudo muda se eu mudo a área. Se área for medicina, talvez não faça mais sentido falar das teorias subsequentes. Ainda há a conexão com o método, mas isso é assunto para outro texto…

Uma última e importante observação sobre a teoria é que ela juntamente com a intepretação do pesquisador ajuda a criar o significado final do texto. As teorias e suas interpretações são feitas por seres humanos que atendem por pesquisadores, pensadores e assim por diante. Como seres humanos, possuem intenções, características pessoais e influência do contexto de vida que influenciam nas suas interpretações e construções da teoria. É como se esses agentes possuíssem lentes que dão formato a essa teoria, representando uma realidade artificial. Desse modo, a construção do referencial teórico é uma reconstrução das teorias e da realidade que podem ser muito úteis dependendo do objetivo do estudo.

O referencial também é uma criação do pesquisador assim como as próprias teorias são reconstruções da realidade que resultam em um efeito de lente dá sentido à teoria e à realidade

A leitura exploratória

A construção do referencial teórico é algo flexível pois cada estudo tem suas peculiaridades. Em alguns casos, existem estudos parecidos que podem nos ajudar a escrever o nosso, é verdade. Mas, de maneira geral, cada estudo é diferente pois não faz sentido um estudo completamente igual a outro.

Para dar conta dessa heterogeneidade de propostas, apresento uma maneira de construir que vale para diversos casos.

Ele começa uma uma leitura exploratória guiada pelas uma das 3 estratégias tendo em mente os 3 tipos de teoria. Por exemplo, se você começou a pesquisa escrevendo os resultados (estratégia), reflita sobre esses resultados em termos do que é necessário para dar conta das 3 teorias. Em outras palavras, indico que reflita sobre seus resultados para descobrir o que nele precisa de explicações. Essas explicações apontam para a teoria que utilizou para análise, a teoria necessária para o leitor compreender o objeto e a teria de área em que o estudo se encaixa. É uma leitura exploratória mas guiada por essas diretrizes.

Na leitura guiada, faça buscas pelas palavras-chave que dizem respeito ao seu estudo, use sinônimos, use termos relacionados de modo que consiga montar na sua cabeça uma compreensão clara da investigação.

Nessa busca exploratória, você vai identificar alguns assuntos que ajudam trazer essa clareza. Esses assuntos podem ser simplesmente aqueles que mais foram úteis para sua compreensão e/ou os que mais se repetem e/ou os indicados pelos autores especialistas no que você está pesquisando. Esse são os tópicos.

Tópicos estruturados

Ao longo desse processo, faça anotações de quais são esses tópicos juntamente com as referências que o ajudaram a compreendê-los. Conforme esses tópicos forem se acumulando, pare e faça reflexões sobre as conexões entre esses tópicos. São semelhantes? Opostos? Possuem alguma relação? São mais amplos e gerais? Ou mais específicos?

O objetivo disso é criar uma organização desses tópicos. O resultado final dessa organização deve ser uma sequência, um caminho, em que um tópico leva a outro e em que eles fluam do mais geral para o mais específico. Isso é o que eu chamo de tópicos estruturados, que devem ter também as referências dos estudos associados a cada um deles.

Os tópicos estruturados formam um caminho que conduz o pensamento para quem escreve e quem lê

Esses tópicos estruturados serão tão melhores quanto forem ricos e tiverem contraste. Um referencial teórico serve não apenas como uma aglomerado de conhecimento e também não apenas um aglomerado organizado de conhecimento.

Diálogo teórico

Existe uma tradição em pesquisa que trata do referencial como uma mera apresentação de conhecimento de diversos autores sem mistura entre eles. É possível construi-lo dessa maneira e comunicar satisfatoriamente o que é necessário para compreender uma pesquisa.

Por outro lado, o referencial teórico pode ser visto também como um grande diálogo entre autores por meio de suas teorias em movimento de debate e consenso. Imagine seu referencial como uma grande reunião de pensadores para debaterem um determinado assunto. Esse debate trará mais entretimento se os autores discordarem entre eles e nós vermos eles “brigando”. Por outro lado, esse debate não pode ser conflituoso demais senão nenhuma conclusão será atingida. Então, é preciso que também haja consenso entre eles, que alguns pensem de maneira parecida e até mesmo se complementem. Adicione a isso as suas conclusões sobre o debate e terá uma visão mais profunda de qualquer assunto.

Pare termos um diálogo proveitoso no referencial, rico e contrastante, sugiro que ele traga teorias de diversos autores, de diversos anos e diferentes visões. Uma mistura de autores consagrados da área como as novidades que existem; as visões de diferentes correntes de pensamento, diferentes autores e assim por diante. Em paralelo a isso, considere que esses tópicos ficam tão mais profundos quanto forem apresentados em grupos e não apenas uma pesquisa isolada que os representem.

No meio dessa heterogeneidade, deve haver a seleção dos melhores estudos a serem utilizados. Sugiro que se utilizem o mais próximo da seguinte diretriz de literatura: artigos internacionais dos últimos 5 ou 10 anos. Caso não seja possível, chegar o mais próximo dessa meta. Por exemplo, se não conseguir artigos internacionais sobre determinado assunto, que pelo menos eles sejam recentes; se for livro, que pelo menos seja de literatura internacional consagrada. Lembrando que o contraste é importante também, como é o caso da utilização de autores consagrados que não tem estudos atuais,

Sugiro que façam desse modo primeiro por uma razão prática: é assim que estão os trabalhos mais valorizados atualmente. Ponto final. Por que artigos? Porque os artigos passam por uma avaliação mais cuidadosa e são feitos por pesquisadores mais experientes do que os de outros tipos. Mas por que recentes? Uma das razões é que se parte da ideia de que os estudos atuais consideram mais estudos realizados. Um artigo de 2000 só pode ter utilizado trabalhos anteriores a 2000; já um de 2022 pode ter considerado mais estudos, mais precisamente um conjunto de mais de 22 anos de pesquisa. Os internacionais é que, atualmente, muitas das principais revistas de uma área tem projeção internacional. Algo como uma seleção dos melhores artigos do mundo.

O referencial pode funcionar como uma reunião metafórica em que os diversos autores debatem as melhores ideias e conclusões são apresentadas de acordo com a intepretação do pesquisador

A redação

A redação consiste em seguir os tópicos estruturados como se fossem um roteiro com a sequência do que deve constar no texto final. A essa altura, o pesquisador já terá uma grande leitura, já terá refletido sobre todo o conteúdo e sobre a sequência dos tópicos, se fazem sentido ou não. Pode ser que mesmo durante a redação existam ajustes a serem feitos.

A recomendação é que para cada tópico se chegue a uma ou mais ideias centrais a serem transformadas em parágrafos. Para cada tópico, uma ou mais ideias centrais. Para cada ideia, um parágrafo apenas. Misturar muitas ideias em um parágrafo pode resultar em falta de clareza para o leitor.

Para dominar essa técnica, você pode analisar trabalhos acadêmicos que já existam e verificar as ideias que cada parágrafo comunica e identificar os tópicos que orientaram o pesquisador na sua redação. É uma espécie de engenharia reversa que pode te ajudar a fazer seu próprio referencial.

Boa parte dessa lógica pode ser utilizada em outras seções do trabalho acadêmico, mas é importante entender a função de cada seção para não se confundir.

Tudo que falei aqui pode ajudar qualquer um a fazer seu próprio referencial. É trabalhoso mas não difícil e se torna prazeroso para quem tem uma investigação instigante e pretende dar ao leitor de bandeja a uma boa compreensão da sua investigação.

Professor Rodrigo

Doutor em Administração, professor e pesquisador há mais de 10 anos.

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